Esta é uma voz da razão um pouco diferente das demais... não prometo regresso permanente, mas achei por bem colocar isto aqui e percam um bocado de tempo a ler isto, a sério!
Está bom demais para termos noção do buraco em que estamos metidos....
é longo, mas vale a pena ler....
O José Vitor existe mesmo?
“resta-nos,
a todos, agradecer encarecidamente ao Tribunal Constitucional, à iliteracia dos
media, à inabilidade política do PSD e à irresponsabilidade do PS e do CDS por
mais esta insanidade.”
Hélder
Ferreira, no Económico
.
José Vitor Malheiros escreve um artigo no
Público de hoje, intitulado “A Dívida Existe Mesmo?”
Esse artigo alinha com uma série de opiniões
correntes, infelizmente muito usuais na nossa imprensa, de que não se sabe o
que nos trouxe aqui, que não se sabe para que serviu a dívida, que há um
secretismo opaco em todos estes processos. A maior parte da opinião publicada
que versa temas económicos é muito pouco fundamentada e este artigo de JVM é
apenas mais um exemplo da iliteracia generalizada que grassa pela imprensa.
Algumas passagens do artigo:
“Há
uns anos, começámos a ouvir falar do volume excessivo de dívida pública (que
hoje rondará os 124% do PIB) e disseram-nos que precisávamos de a pagar
urgentemente.”
Quem disse? O que ouvimos na última década de
gente ajuizada é que o caminho teria que mudar rapidamente, para não falirmos.
Infelizmente, quem falou não foi ouvido. O José Vítor não fará a mais pequena
ideia, mas pagar a dívida pública urgentemente é impossível. Para a pagar em 10
anos, precisávamos de um superavit de 12,5% ao ano. Para a pagar em 20,
precisávamos de 6 e qualquer coisa por cento. Estamos muito longe de a poder
pagar “urgentemente”. O que está em causa é, tão só, fazer com que a dívida não
engorde mais e para isso, precisamos de conseguir atingir uma meta extremamente
difícil: défice zero.
Quando a dívida pública deixar de crescer,
arriscamo-nos a, talvez, conseguir gerir
a dívida, como dizia um anterior primeiro-ministro de má memória. Isto se os
nossos credores acreditarem que ganhámos juízo e se governo e oposição tiverem
discursos coerentes. Para reduzir o volume de endividamento para valores mais
aceitáveis, qualquer que seja a redução, também precisamos de superavits – ou de muito crescimento, o que não acontecerá sem
baixar impostos, o que implica cortar ainda mais na despesa pública. Como
ninguém (exceto a troika) está disposto a emprestar-nos dinheiro a juros
suportáveis, não há alternativa. Ou tapamos o buraco do défice, ou já fomos.
“Tínhamos
vivido acima das nossas possibilidades, disseram-nos”.
Não sei se percebeu bem o que lhe disseram,
mas quem viveu acima das possibilidades dos contribuintes foi o Estado. Por
isso se endividou, todos os anos cada vez mais, porque gastou sempre mais do
que recolhia de taxas e impostos.
“O
Governo de Passos Coelho, quebrando as promessas eleitorais, pôs fim aos
subsídios de férias e Natal com impostos extraordinários, cortou os nossos
salários com aumentos de IRS, cortou subsídios e pensões…
Tudo
isto, recorde-se, para reduzir nossa dívida, que gerava défices insustentáveis,
já que para pagar mensalidades dos empréstimos antigos se contraíam novos
empréstimos a juros mais elevados.”
.Sim, Passos Coelho mentiu na campanha eleitoral, mas mentiu menos que
todos os restantes candidatos que prometeram, todos, mundos ainda melhores. Mas
nada disto, infelizmente, foi para reduzir a nossa dívida. Apenas para tentar
que ela cresça mais lentamente. Não é a nossa dívida que gera défices
insustentáveis. São os défices insustentáveis que geram dívida. Enquanto houver
défice, a dívida cresce. É verdadeiramente inacreditável que tanta gente
aparentemente bem formada e tantos jornalistas pretensamente bem informados
ainda não tenham compreendido que a divida pública é, basicamente, o somatório
dos défices dos anos anteriores.
.“Foi em
nome do pagamento dessa dívida que nos foram impostos sacrifícios e que se foi
sacrificando o Estado Social”.
Não foi nada, José. Foi porque se acabou o
dinheiro e já ninguém nos empresta mais, porque os investidores que iam
cobrindo todos os anos o défice do estado com empréstimos começaram a não
acreditar que Portugal possa pagar. Foi por não haver dinheiro para suportar o
custo do estado que nos foram impostos sacrifícios. Nunca foi para pagar
dívida. O acordo com a troika negociado pelo
anterior governo nunca chegava a apresentar superavit. Terminava com um défice
de 3% – o que significa que nesse último ano do acordo, o problema ainda não
estaria resolvido e a dívida pública continuaria a aumentar.
Aponte José Vítor (em bold e sublinhado para que nunca se esqueça): a Dívida Pública de um
ano é a Dívida Pública do ano anterior mais o défice do ano corrente. Sim, há outras coisinhas, mas não quero
confundir-lhe a cabeça. Esta definição serve para começar.
Todos as frases que JVM escreve de seguida e
que começam com “É em nome do pagamento dessa dívida…” estão erradas. Não é nada em nome do pagamento dessa
dívida. É por não haver mais dinheiro. Só. Porque acabou. Porque não há mais.
Depois, vem a parte mais interessante desta
crónica. Aquela em faz muitas perguntas. Imbuídos de um espírito evangelizador,
tentemos ajudar o José Vitor.
P:
“Mas que dívida é esta?”
R: É, grosso modo, o défice acumulado dos
últimos 38 anos.
.P: “Para
começar, quanto devemos exatamente e a quem?”
R: Em 31 de Dezembro de 2011, devíamos cerca
de 180.000 milhões de euros. Devemos aos detentores de títulos de dívida
pública e aos bancos que emprestaram diretamente às empresas públicas, câmaras
municipais e governos regionais. No final do programa da ajustamento em curso,
parte desta dívida que existia em Junho de 2011 é substituída pelo empréstimo
da Troika, que totalizará 78.000 milhões de euros. Este montante, é
aproximadamente equivalente ao valor das OTs que vencem durante o período de
intervenção e que só poderiam ser renovadas a custos muito elevados, mais o
défice estimado para 2011 a 2013.
.P: “Alguém
já viu a lista das dívidas.”
R: Sim. Muita gente. Todos os que olham para
as contas públicas. Pode ir ao site do IGCP para mais informações sobre títulos do estado, aos
orçamentos municipais para ver quanto deve cada câmara e aos Relatórios e
Contas dos Institutos e empresas públicas para ver o que resta desse lado. Os
totais estão no Pordata.
.P: “Quem a
certificou? Quem a auditou?”
R: O Tribunal de Contas audita as contas
públicas. A dívida é apenas o défice acumulado de cada ano, pelo que a pergunta
demonstra alguma incompreensão do modo como estes conceitos se interligam.
.P: “Quem
são os credores?”
R: Ver atrás. Os detentores de obrigações do
estado são principalmente bancos e fundos. Antes da crise, uma parte
significativa estava em fundos de pensões estrangeiros – típicos clientes de
títulos de dívidas soberanas. Depois, quando o risco começou a aumentar e os
ratings começaram a baixar, a dívida foi impingida a bancos e fundos
portugueses, entre eles fundos do próprio estado, como o Fundo de Estabilização
Financeira da Segurança Social e os fundos de Poupança Reforma de muitos bancos
e sociedades financeiras. As OTs são livremente transacionadas no mercado, pelo
que estão à disposição de qualquer investidor. Não têm nome na capa, embora a
maior parte publique as suas carteiras de títulos pelo que podemos ver quanto
detém cada fundo. De acordo com o Banco de Portugal, em 30 de Junho de 2012 a
banca portuguesa detinha um valor superior a 33 mil milhões de euros de títulos
de dívida pública nacional com maturidade superior a um ano. No caso da dívida
direta à banca, os credores são em grande parte portugueses, com BCP, BES e CGD
à cabeça.
.P: “E
devemos de quê?”
R: Dos défices José. Dos défices. Dos
défices. Dos défices. Escreva 100 vezes, por favor.
.P: “O que
comprámos?”
R: O estado compra muitas coisas. Por exemplo,
em 2010 gastou 88,5 mil milhões de euros. Como só teve de receitas 71,5 mil
milhões, pediu emprestado 17 mil milhões. Principalmente, compra trabalho –
cerca de 21.000 milhões são salários de funcionários públicos – paga pensões e
faz aquilo a que chama investimentos. Também faz muitas transferências de
verbas para muitos sítios: Regiões autónomas, municípios, fundações, empresas
públicas e todos os milhares de institutos e organismos que por aí pululam. Os
orçamentos do estado têm páginas e páginas de tabelas de organismos e
instituições que recebem dinheiros do estado. Veja aqui,
por exemplo, para 2010. Mas se pergunta o que comprámos com a dívida, a
resposta é simples: comprámos o défice. O défice. O défice. O défice. (Escrever
500 vezes, por favor)
.P: “O que
pedimos emprestado?”
R: Em cada ano, o valor do défice menos
eventuais ganhos de privatizações. Vamos lá outra vez: O défice. O défice. O
défice. Escrever 1000 vezes.
.P: “Em que
condições?”
R: No caso de emissões de dívida pública, nas
condições do mercado a cada momento. Se houver muita procura, pelos nossos
títulos de dívida, os preços – o juro – baixam. Aquilo que se chamava ataques
especulativos eram tão somente investidores a deixar de comprar dívida
portuguesa e outros receosos a aceitarem apenas juros mais altos. Não era um
ataque. Era uma defesa. Menos procura, maior risco, preço mais alto.
Ultimamente, financiamo-nos apenas nas condições da troika, exceto para pequenas emissões de prazos mais curtos.
No caso dos empréstimos bancários, nas condições negociadas com os bancos,
habitualmente a custos muito inferiores ao resto da economia.
.P:
“Quando?”
R: Todos os anos, várias vezes. O estado pede
não apenas o montante do défice, mas também montantes equivalentes às
amortizações de cada ano, para substituir a dívida que vai vencendo.
.P: “Quem
pediu?”
R: O Estado, habitualmente através do
Instituto de Gestão de Dívida Pública. O governo, via acordo com a troika. Ou as Câmaras e organismos públicas em negociação
direta com bancos.
.P: “Quem
recebeu?”
R: O Estado, as câmaras, as empresas
públicas. Grande parte foi obra do último governo. Veja no fim da página o
buraco de Sócrates.
.P: “Onde e
Quando?”
R: Está mesmo a leste. Todos os anos. Todos
os meses. É público.
.P: “Para
onde entrou o dinheiro?”
R: Para contas dos estado, das autarquias e
das empresas públicas.
.P: “Para
que serviu?”
R: Para pagar o défice. Vamos lá outra vez. O
défice. O défice. O défice. Escreva 5000 vezes.
.Questiona de seguida JVM se o dinheiro foi bem gasto ou não. “Se serviu
principalmente para encher os bolsos das empresas das PPP, da Soares da Costa,
da Mota-Engil…”
Sinto surpreende-lo, meu caro. O estado ainda
não gastou o dinheiro nas PPP. Só agora é que está a começar a pagar. As PPP,
na sua maioria, foram um truque para fazer obra pública inviável sem pagar e
deixar a conta para quem viesse depois. Eles fizeram a festa e ganharam os
votos, o seguinte que se fornique, mais os contribuintes que servem para estas
coisas. A fatura só está a chegar agora e vai continuar a chegar nos próximos
20 anos. Se essas obrigações estivessem registadas na nossa dívida pública,
corresponderiam a mais 26 mil milhões de euros sobre os quais teríamos que
pagar juros e capital.
.Após todas estas perguntas, o artigo do José Vitor continua com um
parágrafo inenarrável:
“É
que é essa informação a que eu tenho acesso na minha hipoteca e no meu cartão
de crédito. Essa é a informação que qualquer credor tem de mostrar (e provar)
quando exige pagamento”. “… não existe absolutamente nenhuma razão para que
esta informação não nos seja fornecida em todos os detalhes, atualizada e
explicada”.
Que dizer a isto? Que quem detém OTs do estado,
tem de mostrar as execuções orçamentais e os défices das últimas 3 décadas? Que
absurdo. Será que JVM pensa que cada emissão de dívida pública discriminava o
destino? O estado pedia, quem tinha gestão de poupanças alheias emprestava. Era
só isso, José. Ou pensa que quando o estado faz uma emissão de dívida, tem que
explicar que é x para a piscina de Corroios, y para pagar os Magalhães e z para
a RTP?
É para o défice, José. O défice. O défice. O
défice. (10000 vezes)
A seguir o José Vitor chama vigarista ao
governo. Felizmente, que vindo de quem demonstra tal nível de sapiência, um
insulto destes é quase um elogio.
Esta ignorância dos mais básicos detalhes das
finanças públicas que o José Vitor revela, não o impede de escrever artigos
atrás de artigos sobre estes temas. Por esse motivo e porque isto é o Público,
ainda tenho esperança de ser convidado para escrever crónicas sobre operações à
próstata ou sobre a história da Mesopotâmia antiga.
Pior não saía.
Escrito
por João Caetano Dias
O BURACO DE SOCRATES
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Legenda:
OTs – Obrigações de Tesouro
Superavit - superavit pode ser
o excedente resultante da execução orçamentária que aferiu mais
ganhos do que gastos. Nesse caso o orçamento é chamado de superavitário
e o resultado oposto denomina-se "deficit".
Pela técnica orçamentária pública, o plano deve estar equilibrado. Assim se
a princípio as receitas comuns estimadas forem inferiores às despesas comuns
fixadas, o orçamento deverá prever formar objetivas de financiar esse deficit,
geralmente através de operações de
crédito.
Em Economia ou contabilidade nacional, quando há uma
diferença positiva entre receita e despesa
na balança comercial de um país, esta passa a ser superavitária, sobrando
capital para reinvestir no próprio sistema financeiro.
O controle monetário há que ser executado, de forma que não haja deflação, que é tão maléfica para o sistema financeiro
quanto a inflação, pois ambas causam recessão. Como John Maynard Keynes declara, em sua obra Teoria
geral do emprego, do juro e da moeda (1936), "os investimentos
públicos e privados determinam diretamente a elevação e a redução dos níveis de
renda e emprego. Em contraposição à tese da escola clássica, segundo a qual o
estado deveria manter-se, tanto quanto possível, à margem da atividade
econômica". Assim, Keynes propunha que o estado se transformasse em motor
do desenvolvimento, intervindo de forma cíclica e positiva, criando ora
superavit, ora déficit, na macroeconomia.